Faz precisamente hoje 70 anos que caminhamos, sozinhos, para a Escola.
Manhã cedo, a nossa mãe, receosa, deu-nos o pequeno almoço: uma caneca com café com leite e um pão com manteiga.
Já estava frio e nos pés calçava umas chancas compradas no João da Tulha, na esquina das ruas Álvaro Castelões e Primeiro de Dezembro. Era bonitas, com aqueles pregos amarelos.
De calções (tinha sempre dos melhores com retalhos que sobravam dos fatos que o meu pai fazia para os seus clientes) e camisola branca.
A saca era de sarapilheira colorida, que a minha mãe teria comprado na loja do Ruço, perto do Mercado.
Com algum receio, pois só conhecera a escola no dia da matricula, caminhei para a Escola dos Sinos. Sem conhecer ninguém. O meu melhor amigo, já desaparecido, o Vitor Azevedo, fora para a Escola do Adro, pois o pai dele era "irmão" do Senhor de Matosinhos.
Só lá caminhei pela rua Brito e Cunha, dei os bons dias ao fontanário vizinho da loja do senhor Magalhães, andei uns metros pela rua do Godinho e vi a Vitorinha à porta do seu estabelecimento, percorrendo depois a rua de Álvaro Castelões. Sentia-me já gente crescida e só junto da carvoaria, a dois passos da Escola é que parei para ganhar fôlego. À porta da escola muitos rapazes, a partir daí amigos de uma vida inteira, enquanto na Escola ao lado estavam também muitas raparigas.
Surgiria-nos, depois, à porta da escola o nosso professor. O senhor Paredes. Homem alto vestido na sua bata branca. Mãos enormes. E lá nos fez entrar e sentar. Eu fiquei numa carteira na terceira fila, juntamente com o Pinto.
Foram-nos dadas as boas-vindas e o professor Paredes disse-nos que a partir daquele momento começava uma nova vida para todos nós.
Ali estava o quadro negro, um grande armário com as medidas de capacidade, os pesos, e o aparato para medir a madeira. Alguns livros a parecerem uma biblioteca.
Eu na saca levava somente o livro da 1ª.classe, a lousa e as penas para escrever na mesma. O professor deu-nos um caderno para escrevermos as primeiras e outro os primeiros números, bem como uma caneta com aparo de aço que tínhamos de molhar num tinteiro que havia na carteira.
Ao fundo da sala a porta que dava para a residência do professor e recordamos ter visto aparecer uma senhora, muito forte, que mais tarde soubemos chamar-se D. Aninhas e que era esposa do senhor Paredes, ambos naturais de Terras do Bouro.
Ao lado da secretária de madeira já comida pelo tempo, alguns papeis, uma caderneta com os nossos nomes, enquanto o parapeito das grandes janelas estava pejado com vasos de diversas plantas. Bonito.
Lá estava uma cana encostada à parede e que algumas vezes nos acertou na cabeça, uma régua que muitas viria a estalar nas mãos dos meus companheiros (nas minhas só aconteceria, em quatro anos, duas vezes, por estar a falar), e uma velha flauta, com aspecto doentio, pois estava amarrada por vários fios azuis, instrumento que haveria de ser a delícia do sábados de manhã, quando tinhamos lazer e cantávamos ao som da flauta soprada pelos lábios grossos do professor: "os passarinhos, tão engraçados...".
O vasto quintal de recreio, todo florido com crisântemos, pois estávamos perto de Novembro e mais tarde soubemos que a D. Aninhas dava e oferecia as flores para o Dia dos Fieis Defuntos. No fundo do recreio uma grande figueira que era refúgio nos dias de calor e de humidade e que durante muitos anos seria ponto de referência como recordação de um Joaquim adulto.
Isto aconteceu a 7 de Outubro de 1941. Há 70 anos. Já muitos ficaram pelo caminho e tantas vezes os recordamos, bem como ao professor que foi um meu segundo pai.
Há 70 anos.